Quem não se lembra de “A hora da Estrela”, obra máxima de Clarice Lispector, que conta a história de uma retirante nordestina que vai tentar a vida no Rio de Janeiro e acaba por sofrer várias privações na vida?
Macabéa era uma desgraçada, com perdão da palavra. Raquítica, tola, solitária, porém doce e obediente, ela acreditava que foi jogada ao mundo. Não tinha objetivos na vida e nem sonhos, a não ser o de ser uma estrela de cinema. Consegue ser brilhante, como uma estrela, bem na hora da morte, quando é atropelada.
Lispector era uma visionária, ela tinha esse incrível poder de antever as coisas. Quantas Macabéas existem ou deixaram de existir? Várias, sem dúvida. Eu conheci uma esses dias, o nome dele era Wanderson Pereira dos Santos, 30 anos, ciclista. Fez tudo errado na hora da morte. “Disinfiliz”, como diz minha mãe.
Ajudante de caminhão, ele fez o favor de atravessar a pista bem na hora em que Thor – este Deus ou Semideus - ia passando com seu veículo automotor de grande propulsão e de alto valor financeiro. Amassou o carro da entidade multibilionária, causando um prejuízo econômico sem precedentes para o Transcendente. Apenas perdeu a vida.
Apenas. Mas os deuses, eles não se contentam somente com nossa humilde vida miserável. Pragas que somos, câncer do mundo. Eles querem mais, eles querem vingança. A vida por si só não basta.
Eis então que Thor, num excesso de fúria, contrata o maior, o melhor, o mais radiante e caro advogado para lhe defender: Marcio Thomas Bastos. Ex-ministro da Justiça, sabe tudo em direito penal, processo penal, conhece como ninguém as brechas da lei, manja tudo de “karatê”. O objetivo deste áureo advogado, além de defender a causa do Deus, é fazer com que Wanderson pague pelo crime que ele cometeu: atravessar a pista, a fim de atropelar a Mercedez de Thor com a sua humilde bicicleta, numa BR, expondo, dessa forma, imagem do superior a todos, ofuscando a luz dele por alguns dias e avocando a si o brilho da estrela. Sim, cometeu o crime de ofuscar Thor, teve a sua hora da estrela e, por isso, tudo indica que o finado vai parar na cadeia. É o que lhe resta, absurdo que seja.
Para que isso aconteça, só depende mesmo de um outro deus, acostumado também a usar um martela, mui amigo dos bilionários: o juiz. Claramente, ele decidirá a causa em favor do corporativismo.
Wanderson, seu desgraçado, infeliz e miserável pague pelo crime que você cometeu! “morreu na contramão atrapalhando o tráfego...” fico aqui cantarolando.